João olha para os livros nas prateleiras e sente um pouco de pena. Não conseguiu se concentrar para estudar à noite, não conseguiu estudar de manhã, quando acordou bem mais cedo do que o necessário para chegar em tempo para o trabalho. Olha para os livros com pena porque eles estão ali, sendo tratados como mera mercadoria e enfeite, para serem repassados a clientes que os comprarão apenas para mostrar para todo mundo o quanto são cultos e espertos. Então a Maria se aproxima e lhe pergunta:
– Quais são as suas pretensões, João?
Ocorre um pequeno curto-circuito, por alguns momentos. João tentava se lembrar daqueles quadrinhos que tanto gosta de ler, o quanto se afoga naquelas estórias absurdas de fantasiados com superpoderes. Nada daquilo é real... mas sua vida também não é. Então ele enxergava pequeninos homens verdes invadindo a livraria em que trabalha e jogando gosma colorida na cara de seus colegas de trabalho – e todos estariam sorrindo e dando as mãos. Mas em vez disso, estava empilhando livros em cima de livros, para serem vendidos como enfeite de estantes melancólicas. Chega um novo cliente perguntando por aquele autor da moda, que escreveu um livro de mil e duzentas páginas, capa dura e colorida, abre o livro no meio da rua de todos vêm, várias pessoas lendo o mesmo livro, a mesma estória, comentam nas redes sociais, todos seguindo a mesma moda, João chega em casa e liga o computador e vê, quais são suas pretensões?, ela lhe perguntou, o futebol passa na televisão, mas João apenas toma nota dos resultados, uns caras berram na rua a cada gol, o time grandão de torcida grandona vencendo, muitas pessoas berrando gol, nós estamos vencendo, nossa vida é medíocre e nós estamos vencendo, aí compartilham a imagem do ex-presidente canceroso que deveria se tratar no Sistema Único de Saúde, a piadinha que se espalha no mar de idiotices sórdidas, moleques da faculdade fumam erva e jogam pedras em policiais que jogam bombas, quais são suas pretensões?, de que lado você está?, enquanto arruma mais produtos para fazer a festa dos que fingem para si próprios que a vida possui algum significado.
– Como assim, pretensões? - retruca João. – O que quer....?
A pergunta não termina. A cabeça se afunda entre as mãos. Na mesa dos mais vendidos, está o fino livro de poesias, poemas de acordo com o formato, poesia pelo uso desgastado das palavras, um cachorro entra acompanhado de uma madame, eu quero aquele livro do padre, aquele livro da narrativa histórica de investigação, e não porque é um best-seller, não não, eu não sigo a moda!, João sorri e lhe dá o livro, enquanto todos querem saber quais são suas pretensões, uma garrafa de cachaça na festa daquele seu amigo, todos cambaleando e ousados em fúria ébria, João apenas sentado olhando, fingindo que sorri e que se diverte, a música serpenteia por entre seus ouvidos e as danças se intoxicam com os corpos desajeitados que se mexem, quando era criança tomou um soco na cara, chutes no estômago, havia várias Marias em miniatura que o ignorava, era um corredor azul repleto de lebres nas paredes, havia uma coruja no uniforme, não há muitos argumentos além daqueles absorvidos em idade escolar, aí a professora de História diz para a turma: “Ao longo dos anos, o homem se especializou na arte de matar”, tinham 11 anos, matamos para aprender, e estamos sempre aprendendo, videogame na sala, jogando sozinho, aquele seu amiguinho tímido toca a campainha e pergunta se pode entrar, resmungos de aprovação, olham absortos para tela enquanto os bonequinhos se movem, soltam bolas de fogo das mãos, quais são suas pretensões, o herói voa e grita toda sua fúria contra o mal, um dia inteiro parado sem fazer nada que seja considerado útil, enquanto excelentes ideias vão se criando e descrevendo, um desperdício de si mesmo aos olhos dos outros, as celebridades as quais todos se curvam e as quais milhões choraram quando a hora chegar, enquanto um verme indigno de existir se arrasta e olha livros com pena, Maria chega e lhe pergunta quais eram suas pretensões e então João gagueja, ela insiste e então ele finalmente responde:
– Quero ser o melhor de todos.