Todas as caixas que já fizeram parte da minha vida tem significado, principalmente aquelas que contemplam o vazio que as faz companhia em suas frágeis paredes de papelão. Alguns diriam que caixas têm mais profundidade que alguns olhares, ou mesmo que certos desejos, vazios por pura incongruência essencial. Nada saberia dizer da espacialidade repleta de solidez rotunda ou retangular, pois essas não me diriam o que preciso saber para decifrar esse silêncio que consome toda essa necessidade absurda de armazenamento. A precisão da idéia de ter que se resguardar para, talvez, em algum momento posterior, compartilhar essa pré-existência egoísta com outrem que nunca partilhou desse ar agora tido como coletivo se assemelha à precisão de um lenhador que leva em sua jornada todo o sangue quente e nenhuma ferramenta. O que fará com todo esse temperamento em tão malfadadas perscrutações no vazio? Como se defenderá da imprevisibilidade se estiver absorto na vulnerabilidade de dois sonetos construídos com inconseqüência e sem atenção ao esquema de rimas?
A necessidade de estar amparado por coisas atualmente obsoletas que um dia nos serviram como identidade projetada parece-me algo um tanto precipitado quando se ensaia uma abordagem mais ousada em termos de construção do ser social quando se pensa em coletivo criado pela interação, ao invés de se buscar auxílio na memória. A tradição de confeccionar álbuns de fotos de família nunca me fez totalmente leve, pelo simples fato do acúmulo de poeira ao longo dos anos em cima das malditas caixas que se acomodam em meu interior mais confortavelmente que muitos dos meus desejos amplamente expulsos de um ser que só vive do passado, da voz ecoada na parede e marcada por rugas nas paredes, nas peles e nas folhas de todo outono que me visitam, sempre amareladas como as fotos do álbum. O olhar lívido fisgado naquele momento pelo empobrecido capturar do maquinário fotográfico nunca soube traduzir tudo que estava a transcorrer naquele translúcido momento, ou ao menos assim se revelava para quem observava a cena que se criava ao longo do rio todo solto que emoldurava a cidade com pura calefação imprevista. Todo aquele calor não poderia ser contido em um momento, em um esgar, em um sorriso para sempre revivido sem dor ou pesar em um eterno retornar para o nunca vivido: a impossibilidade de retratar o real e de conter o palpável sempre me intrigou, e me trouxe a essa antiga reflexão sobre memórias perdidas em ordem de importância e incongruência. As mensagens se perderam com os métodos de transmissão, que nada conservaram da quietude daqueles tempos primevos. Aquele olhar nunca seria revisto, nem mesmo em lembrança.
Aquele momento estava perdido em uma percepção de tempo escassa e insuficiente para descrever a abertura do caminhar como a declaração de todos os céus que nos abrigaram por tanto tempo. A percepção do tempo sempre foi errônea, por ter sempre se pautado em mero tecnicismo que nunca almejou explicitar o tempo enquanto escolha de posicionamento, enquanto abertura de possibilidades, enquanto visualização de caminhos possíveis, que inevitavelmente desencadeariam a criação de supostos múltiplos universos, habitados por diversas essências que nunca coabitariam por não saber escolher um espaço em dois tempos coexistentes. O espaço nunca foi nosso para decidirmos ocupá-lo com todo o nosso lixo existencial. A memória precisa ser reiniciada. Todo inverno é passado com a constante observação do passado resguardado. A projeção nunca foi muito mais que um olhar para o vivenciado com o intuito crescente de atribuir um sentido ao que nunca foi de fato objeto de apropriação subjetiva e individual. Cabe a cada um de nós aceitar o vazio. Afinal, nada existe sem oposição. A contradição é tão necessária à vida quanto o par de caixas que contém o meu tubo de oxigênio. O maquinário tomou a única saída que esse outro olhar poderia encontrar, e tudo que me resta é encontrar uma ilusão que me envolva a ponto de me esquecer do meu propósito. Ou a ponto de me esquecer daquelas caixas. Todas elas são suas. Apenas as peguei emprestadas. O bilhete colocado ao lado delas explica todo o mal entendido. Desculpe-me. Não deveria ter trocado de depósito. Fim do inverno.
*Escrito por Fernanda Marques Granato.
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