sábado, 1 de junho de 2013

A ambição dos vendedores ambulantes



Dois pingos de substância desconhecida, entretanto sabidamente adocicada, atingiram a superfície arenosa rigidamente definida por chuvas incessantes que insistiram em se fazer presentes nos passados dias rebocados a uma mera instância verbal. O pretérito era a construção supostamente finalizada que daria suporte para o início de outros recomeços, porém nem todo grão dava origem a duas gotas totalmente irretocadas. Por vezes, as gotas eram subtraídas e controladas antes mesmo de se colocarem como individualidades em si mesmas. 
Nunca foram reconhecidas enquanto rotundidades, no entanto se inseriam no coletivo como secundárias ao processo em curso, quase como se mal dependessem dele, como se não viessem a superfície com o auxílio da sua projeção. A imagem era tudo, e o pontilhismo sabia disso graças a respiradas recalcadas.  O mar estava pronto para recebê-las, mas não era o momento certo. Não havia alguém para definir o que seria essa inserção, essa aceitação das gotas pela maré. A entrada não estava definida, nem a música. As cores andavam soltas, sem saber ao certo se deveriam pulular animadamente em toalhas, maiôs ou guarda-sóis. A subjetividade estava solta no preto e branco, e nada fora registrado como espetacularização. Cada gota existia previamente colocada em suas embalagens adocicadas, e talvez nunca ninguém as pudesse contemplar. Era o único sorveteiro, e a tarde já caia no céu toda ampla. A amplitude amena da manhã já foi muito antes, já se transviou e não voltaria às gotas tão cedo. Pesar. 
Não precisava daquele momento espetacular. De verdade, no interior do receptáculo, nunca precisaram realmente. Apenas em imaginação desconstruída pensaram que pudessem se perder no vazio, mas isso nunca ficou comprovado estatisticamente. Ninguém veio lhes dizer a que a intromissão veio, porém a resposta não é mais precisa. A areia lhes tocou de uma forma que ninguém nunca soube atingir-lhes, tocando tão docemente os momentos lembrados e momentos nunca perdidos em hipocampos eternizados. 
O homem que tocasse essa areia cedo saberia a dor que um dia inocentemente causei, e que, agora, como vítima, sinto diariamente. A dor de saber que não sou o que seria se tivesse fugido do seu toque, sedutor porém ardiloso; não sou o que fui ontem, pois o ontem está perdido em um encadeamento verbal que varia de língua para língua e se prova, portanto, irrelevante tentar recuperar a perda de qualidade de tradução em tradução. As gerações de calor se perdem no vazio, e esse esplendor nunca poderá ser reconstruído, nem por código, nem diagrama nem soneto. 
Nenhuma alma humana saberia o que senti esmagada entre aqueles dois grãos requentados de areia pura semi-rosada. O ardor na pele era nítido, entretanto apenas o observador relapso veria o que estava por trás daqueles incandescentes olhos imortalizados na luz do candelabro: a imagem que cedo se refletia na percepção subjetiva era seca, quase imperceptível para quem passasse sem respirar aquela toxicidade aérea. A rispidez do contato da areia com a água salgada sempre deu o tom do diálogo ignorado há séculos por gerações sem fim de românticos desabrigados. Talvez nunca houvesse alguém para recuperar cada gota perdida na imensidão de grãos vazios. A gota semi curada secou, e nada sobrou para ser apreciado. 
A noite se apresenta a cada uma das gotas, que decidem se remediar no vazio existencial amplamente compartilhado em toda a imobilidade da pós-modernidade por todos nós, que um dia, fomos apenas grãos de areia. 


*Escrito por Fernanda Marques Granato.
*Texto protegido pela lei de direitos autorais.




**As opiniões expressas nesse post são de total responsabilidade do seu autor.**

2 comentários:

  1. Um dia, publicará livros de poesias e prosas poéticas, e será lida por doutores acadêmicos e apresentada em seminários sem fim pelas faculdades de letras. Continue, por gentileza.

    ResponderExcluir