- João, alguma vez você...?
Não se pergunta o que não deve. Todos aqueles instantes deveriam ser esquecidos. João observa o que não existe. Você diz que até chorou, então não lamentamos. João, no seu íntimo, até sente alguma inveja. É capaz de admitir para si próprio? Maria distante, tão distante, é capaz de relacionar? Quem você acha que está falando agora? Acordou cedo para uma nova realidade, estava ansioso. João escolheu uma bonita roupinha de trabalho, pelo menos o que assim considera como tal. Vestiu-se para a nova labuta que estava por vir. Fazer parte novamente do mundo? O sisteminha nosso de todos os dias nos exige, não é isso? Faça parte, seja mais uma peça da engrenagem, venda seu corpo e seu cérebro, faça a máquina funcionar. Bonita perspectiva foi-lhe oferecida, finalmente um vislumbre real. Esperou tanto por isso, não? Esperou exatamente isto? Não. Cobrou-lhe no telefone que fizesse concurso. De novo? Já tivemos essa dança, e foi desastrosa, nós lembramos. Foram dois anos desperdiçados, lembra-se de quando acordava cedo para o curso? Engomados em ternos, ou camisas de botão para dentro da calça, estamos aprendendo, nós lembramos, mãos no queixo e polegares na bochecha, estamos aprendendo, sim, vomite-nos toda a idiotice de sistemas viciados, falsos conhecimentos de verdades absolutas, iremos entrar nas discussões de mérito? Meretrizes dos direitos, João vestira terno e gravata e maleta do senhor bom funcionário? O fim já sabemos, o colapso, inútil na cama por uma semana, não sabemos se foi menos ou mais, havia alguém para segurar sua mão. Nunca haveria, fecha-se sempre, não divide, não permite que se aproximem. Como ousa cobrar portanto que Maria compreenda? É irracional, mal sabe admitir o que sente, o que é o amor? Aqueles que não sabem o que é o amor comparam-no à beleza, aqueles que querem conhecer o amor comparam-no à feiura, como é que será para você, João? Maria falou com você distante, elogiou a forma como se expressa, entendeu este recado? Mas quando pôs em dúvida a mudança visual, você compreende? Houve prantos, mas não foram para você, meu caro João. Você se lembra quando foi a última vez em que chorou nesta vida? Os olhos secos, não demonstra, não se abre, até quando fingirá que é uma pedra? Na sala comentaram, mas ela era gorda, não é? E aquela outra gorda, você lembra...? Sacrificou os próprios gostos ou quis experimentar algo novo? Quis testar seus próprios preconceitos? Talvez seja punição pela sua intolerância, até quando suportará o não-contato? Talvez se eu abraçar a inexistência, poderei me tornar uno com o reino do pensamento. Poderia eu tornar-me um ser composto apenas por pensamento? A carne que estamos desprezando, a carne que estamos maltratando. Sente-se desperdiçado, João? Considera-se eficiente no sexo, bem como todos os de sua raça, considera-se potente. Então por que não se joga? Por que tanto seleciona? Lembra-se da adolescência medrosa e sem maiores critérios, ao menos havia alguma ação. A Maria perfeita, se existisse, atrás do João perfeito estaria. Será que algum dia você terá a decência de se apaixonar pelos defeitos, em vez de se apequenar enxergando somente as qualidades, meu caro João? Desperdiça-se, os dias todos, só que lamentos não o levarão até a grandeza que tanto anseia. Quantos pináculos são necessários para que o auge se torne real? Muitas perguntas para respostas que não existem. Até quando você sofrerá por coisas que nunca teve? Segue-se respirando, retirou-se quando perguntaram, alguma vez você perdeu o controle? Não iremos responder, nunca, não interessa. Sabe, ficou vermelho, a fúria se estilhaçou como se fossem farpas sangrentas dilacerando a alma, você queria despedaçá-lo com suas próprias mãos, não é isso? Não contaremos mais, porque ninguém se machucou, porque estavam lá para apartar, mas e se não estivessem? É por isso que respiramos na escuridão, em solidão e em silêncio, se Maria disso soubesse sentiria ainda mais medo? Que aura é essa de estranheza alienígena que emana de você, meu caro João. A dor lhe causando sensações de prazer? Doem, sente-se nas juntas, na base da costela, diz que se alonga, mas se mexe para que sinta mais dor. É isso? Mais conforto desta forma, ao menos está vivo. Se você se regenerasse dos ferimentos, mas continuasse sentindo dor, cortar-se-ia todos os dias? Estaria viciado, possivelmente. Quantas vezes caminhou solitário e desejou que soubesse como se sentia? Mas nunca se entenderá, nem nunca entenderão, porque você nunca se dispõe a entender o outro. Maria não se aproximará, porque você não permite, nem tem paciência para tanto. O que é amor? Enquanto isso, aguarda o machado, vai lá de novo vender o corpo e a alma, se fosse antigamente se rebelaria, aliás, foi o que fez no passado, mas o futuro chegou e você ainda não se enquadra, então vai se vender e garantir o sustento e dessa forma ser mais uma engrenagem no sistema, finalmente mais um merda normal, João, alguma vez você...?
Retirou-se para dentro de si, trancafiou-se. E ninguém sentirá pena, pois estão todos ocupados com seus próprios deuses loucos.
**As opiniões expressas nesse post são de total responsabilidade do seu autor.**
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