– Qual sua posição no movimento, companheiro João?
Estavam todos ali reunidos, em expectativa, quase amontoados um em cima dos outros, debruçados nas marquises e parapeitos, parafernálias de apoio que talvez apoiassem as falhas nas ideias de João. Ele tentou várias vezes acreditar, mas tudo que achou foram falhas na comunicação.
– Companheiros! Estamos aqui unidos pelos direitos dos estudantes, contra a opressão da burguesia! Por melhores condições aos trabalhadores! Contra a polícia que espanca e mata! Pela repimboca da parafuseta!
O discurso era tão infamado quanto um fósforo moribundo, mas as palmas berraram alto assim mesmo. Da mesma forma que alto berraram aquelas lembranças de quando era criança, num comício com milhares de vezes mais gente do que agora, quando o grande líder apareceu, ex-exilado político, o senhor supremo da espada esquerda, proletários iam às lágrimas, passou ali idoso e cheio de presença, afagou a cabeça de João no meio da confusão, empurra-empurra e gritaria, esquerdas levantadas para o grande momento do discurso máximo, não se lembra das palavras mas as palmas eram ensurdecedoras, andando pela rua a caminho e cogitando, em frente à televisão e todas aquelas figuras engraçadas berrando promessas em forma de impropérios, em casa todos tinham posição clara, papai se candidatou e vamos todos apoiar, sentado ali no comitê com água e biscoitos, vários santinhos e pessoas pedindo camisas, uma família sem teto pediu até bonés para desfilar na nova moda de números e sujeira, então subimos no morro para distribuir palavras e sorrisos, acho que queriam dinheirinhos e papéis de promessas, o doutor companheiro é o candidato certo!, o doutor companheiro é professor e cuidará da educação de todos!, o doutor companheiro é o máximo de todas as paixões possíveis, vagando pelo centro dos papéis no chão, camisas e adesivos, João tentou acreditar mas tudo que encontrou foram falhas na comunicação, papai foi brincar de política e a família se perguntando se haveria tempo em sua agenda, falha na comunicação de sentimentos deixados de lado e laços nunca bem amarrados, agora crianças brincando de comício e berrando palavras de ordem e clichês esquerdistas que ouvia desde criança.
– Venha para o movimento, companheiro João! Você tem excelentes ideias!
João retorna para outro tempo anterior. Maria estava lá, contracenando naquela esquete que ele mesmo escreveu, para apresentar naquele festival, daquelas crianças vaidosas porque achavam que interpretavam alguma coisa que valesse num palco para papais rechonchudos com cérebro de escritório e visão de novela, falhas na imaginação sem a menor graça, enquanto crianças berravam palavras de ordem fingindo para si próprias que interpretavam, João se lembrava dos engraçados na televisão dos candidatos, estamos todos interpretando o tempo todo, fingindo que somos úteis para a sociedade e fingindo que toda essa inutilidade possui alguma importância, ideologias em profusão, se amontoando como se fossem bosta borbulhante, Maria estava lá para beijá-lo na esquete que João havia escrito, da mesma forma que escreveu aqueles poemas quando era ainda mais novo, mas nunca os apresentou porque fingiu que trocou o horário da apresentação e então chegou tarde demais, havia sido o primeiro lugar mas não os apresentou, tremia só de pensar toda aquela cobrança em forma de olhos críticos e cruéis, estamos sempre sendo vigiados, analisados, cobrados e julgados, sempre, sempre, sempre, João se contorcia sozinho no escuro quando ninguém estava olhando, e mesmo assim perguntavam, qual sua posição no movimento, companheiro João?
– Nenhuma posição, já que não estou me movendo – respondeu João.
– Como assim, posição nenhuma? Não pode! Não pode ficar em cima do muro!
É que não havia nada. Maria iria beijá-lo na esquete, mas João fingiu para si que trocou de horário e perdeu a apresentação; a peça conseguiu uma boa colocação, mas João não estava lá para apresentá-la e então a esquete em que João beijava a Maria ficou de fora do festival. Afinal, João não se movimenta. Maria apareceu numa novela, num papel de bom destaque para quem está começando a carreira, João assistiu a um capítulo sem querer, estava ela ali numa personagem estereotipada dessas qualquer, mas tava ali se movimentando em busca de seu sonho, enquanto João se contorcia sozinho no escuro lamentando seus fracassos e sua falta de posição, vários foram às ruas para tirar o presidente colorido, João era criança mas já sabia que era manobra da grande emissora, embora o presidente colorido e seu partido fossem inimigos do grande senhor careca que diziam ter fugido do país vestido de mulher, odiavam o senhor careca que lhe afagou a cabeça quando criança, havia escolas e mais escolas em áreas miseráveis que tinham como apelido o nome desse senhor, o mundo se movimentava enquanto João fingia trocar os horários para não se apresentar, para não tomar uma posição, Maria estava magoada com seu último namorado então veio conversar, João tentou acreditar e começou a falar, desta vez dedicaria todo o potencial oculto de um bom homem, fingia sempre que interpretava um simplório bufão, era sempre mais conveniente do que mostrar a si próprio, amizades se constroem assim, mas as pessoas só se entregam umas às outras se houver tesão, o tesão de querer devorar o outro, aos olhos fracassados de João ecoava-lhe o clichê dos bonzinhos que só se ferram, aqueles que fincavam bandeira na zona da amizade para fingir a si próprios que é melhor do que nada, mas qual é a sua posição, companheiro João?, uma lufada de ar fedorento bate-lhe na cara a cada palavra descuidada naquele ridículo jogo de sedução, Maria hesitava e nada falava porque não havia tesão, apenas a amizade, Maria se entregaria a algum outro imbecil desses qualquer que desejasse devorar, João se contorceria sozinho no escuro enquanto lembrava de todos os que estavam em movimentando e realizando seus sonhos, a criançada de agora berrando nos comícios e vivendo apenas na sua própria bolha universitária enquanto berravam palavras de ordem, os olhos de Maria brilhavam enquanto ela considerava entrar para o movimento, João fingia trocar os horários pois acreditava que nunca saberia lidar, enquanto Maria sem o menor tesão beija um desses qualquer na sua frente, ali sentado sozinho no comitê de papai João olhava para o teto, debruçado na marquise do grande salão enquanto berravam contra a opressão, qual a sua posição, companheiro João?
– Nenhuma – pois não há nada em porra de lugar nenhum.