sexta-feira, 7 de março de 2025

Fantasmagoria do amor



Amor.
Uma sombra no escuro. Silhueta. 
Corpo suado, passos e um grande copo de água. 
A água é entornada, e inunda todo o quarto que, estando no vácuo de um navio, já estava esquecido, já era molhado com uma frequência indesejada e já era sumariamente ignorado. Tumescente demais. Desconsiderado. Abandono.
A guitarra ao longe me puxava com sua suave presença, da mesma forma que um corpo poderia me deslocar de modo invertido na sociedade tradicional, e eu aceitava o convite indesejado, aceitando a intrusão, minha velha conhecida, a mãe de todos os pensamentos intrusivos negativos que acumulavam mofo em minha cabeça. O transeunte não transa, temos que pensar nisso.
Em como resolver essa carência. O desejo transbordava do olhar amendoado dela, que reposicionava seu pescoço para melhor beijá-lo. Movimentos repetitivos se tornavam toda uma sequência de contrações ritmadas e suspiros, gemidos e amores, amantes e corpos, falta de ar e vontade de fagocitá-lo. 
Cada investida dele gerava uma longa e intensa contração, capaz de amaciar até a pior insegurança. Clímax. O quarto, inundado em paixão plasmada, se duplicava em fantasmagoria insossa. Gota de chuva. Sabor indescritível.
A carruagem já estava pronta, mas ela não queria partir. Não tinha para onde ir. Tudo que importava no mundo inteiro estava entre aquelas quatro paredes - e entre suas pernas. 
Abraço. Sauna.
A porta fecha, trancando lentamente.
Doce sensação da temperatura sufocante asfixiando todos os presentes. 
Tarde demais.
No dia seguinte, a porta é arrombada.
Funcionários públicos.



*Texto por Fernanda Marques Granato protegido pela lei de direitos autorais. 
**As opiniões expressas nesse post são de total responsabilidade do seu autor.**

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Querer é poder



Quero levantar as paredes.
Quero sentir o turbilhão de vento dentro de mim.

A vastidão indescritível me engole por completo. As batidas na porta ficam mais audíveis, porém ninguém a abre.

Quero usar todos os cadernos, gastar todas as folhas com elucubrações mentais intermináveis que se ramificam em raios de sol e ramos de amoreira. Porque o amor é o resumo e o objetivo de tudo. Amo porque almejo amar cada dia mais em reverberações ovais líquidas que vão, gradualmente, expandindo as suas fronteiras e chamando o mundo todo de seu - pois limite é algo ultrapassado, algo a ser ultrapassado, algo a ser ressignificado. Definitivamente precisamos de uma nova acepção para esse verbete. Os já existentes não tem dado conta ultimamente da imensidão oceânica. Precisamos de mais espaço. O que fazer com a singularidade? 

Cadê o espaço que foi prometido?
Onde está toda a vontade de ser completo?
A voz ecoa, ressoa, sibilando na água doce dos pensamentos intrusivos negativos, repetindo-se em turbilhão, em furacão, em ciclone e em tufão, de modo que todas as cores se dissiparam. Nuvem de verão. Explosão solar. Impenetrabilidade. 

Quem garante, você?
Quero ser engolida por completo, quero coabitar seu corpo, quero saber a sensação da batida do seu coração. 
A gradação é minha, e o anacoluto é de todo mundo. De todo mundo mesmo. Dos mais falantes ao inaudito. Às vezes, tudo que precisamos é abrir o ouvido e fechar os olhos. Tudo que precisamos é deixar o sonho voar com asas emprestadas e depois descobrir como chegar lá com as nossas. Mergulhar na incerteza, prestando muita atenção em todas as notas e todos os acordes. 

A composição é essencial, assim como sua estrutura esquemática. 
O limite é para todos. O limite é para ninguém. 
O controle é a ilusão mais tosca em que já ousei acreditar.
Deixei que ela me consumisse por completo, como um faminto, até que sobrassem apenas duas asas sangrentas da borboleta turquesa, porque a verde-clara estava esgotada. Depreciação. Qual é a borboleta que reinicia a contagem?
Tarde demais.
Entardecer de verão.
Solilóquio de exaustão.
Solidão.

*Texto por Fernanda Marques Granato protegido pela lei de direitos autorais.
**As opiniões expressas nesse post são de total responsabilidade do seu autor.**

domingo, 19 de janeiro de 2025

O duplo e o desejo mimético - ou quem eu fui sem antes nunca ter sido


 

Meu duplo nunca vai envelhecer, pois nunca nasceu.

Não quero ver ninguém. Preciso de uma corda.

Não quero ser relembrada da minha dor.
A imitação barata da vida na arte só me traz mais irritação, frustração, apatia e decepção. 
Para que melhorar, se nada pode ser feito a respeito?

Será que aquele gancho aguentaria o meu peso?

O desenvolvimento é inútil, pois nada leva à superação. É impossível superar algo que muda fundamentalmente nosso DNA para sempre. Nunca serei quem fui antes. Nem mesmo saberia por onde começar.

Sirvo apenas para tremer e me apavorar com o mundo ao meu redor.

Sou um corpo morto em vida. 

Os batimentos cardíacos não podem mais ser registrados, pois são indetectáveis. 

Irrelevância.

Ignoro a passagem do tempo aqui de dentro do meu casulo-caixão, pois aqui ele não passa, apenas a dor aumenta. E permanece. Por que haveria de ser diferente?

Para que deixar o sol iluminar plantas de plástico?

Preciso de uma palavra-valise muito grande para caber tanta agonia, não vai caber na página, como vou fazer para publicar isso tudo depois?

Até o conteúdo de uma lixeira já foi mais majestoso que eu, pois em algum momento foi útil - ou foi gozado. Sim, gozar a vida. Uma tarefa impossível. Cansava demais tentar, já estava sem energia há muito tempo, me arrastando pela terra. Ninguém notaria a minha ausência. Não faria falta, nem diferença alguma. 

Devo ser uma inútil mesmo se não consigo nem mesmo justificar a razão da minha existência para duas baratas que se aproximam do velho colchão. Nem vou tentar apagar o fogo da próxima vez.

Será que posso ao menos ser bem-sucedida em delimitar meu fim?

Diferença nenhuma. 

Só mais um fardo de jornal usado jogado no lixo, com notícias de outra vida desvalorizada.

Seria um alívio.


*Texto por Fernanda Marques Granato. Esse texto é protegido pela lei de direitos autorais.
**As opiniões expressas nesse post são de total responsabilidade do seu autor.**

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Nada ficará pronto, porque o futuro já foi.


Elásticos para cabelos. Tempo. 03.02.2021. Função. Design. 

Por que as coisas têm nomes?

Porque o destino sempre pode mudar, mas o nome, não.

Por que as funções são pré-definidas?

Porque o ritmo depende do ar, então nada pode ocupar espaço sem ser útil para algo. 

Limites. Fronteiras. Definição. Restrição. Regras. Regulamento. 

A subida por vezes me pega, principalmente nas coxas, que mal têm força para se erguerem. Será que eu saberia dizer tudo? Nem saberia começar, para falar a verdade. Nem ao menos dizer o ano. Na verdade, o ano nem importa tanto. O que importa é o som daquele ano. O som ao redor que, ao se posicionar, se limita e se define. De uma forma ou de outra. Os braços também não servem para muito, pois logo o pulso cansa e nada adianta mais. Nada mais pode ser feito. Para que pensar? Será que eu poderia apenas pensar ser função? 

A esperança ocupa muito espaço, realmente tenho que ser minimalista e me livrar dela. Farta estou de esperar sentir a vontade, chegar o momento, saber a frase, pensar o conhecimento a se concretizar, não quero mais contar. Simplesmente não quero mais ter controle. É cansativo. O bloqueio também é irritante. É como se antes de fazer algo, já caísse um prédio em cima do pré-projeto. O julgamento mata a vontade, a culpa estraçalha a motivação, a rotina é defenestrada pelo tédio e tudo o que eu quero saber é o que acontece quando você se torna incapaz de sentir. Por vezes, sinto que estou perto, mas em outros momentos sinto que estou longe, pois a dor é forte demais. Sinto-me mais à vontade com a dor do que sem. A barriga é grande fonte de estresse. Ou dói ou causa suor na testa e na nuca. A nuca nunca me deixa em paz. O que fazer com o fio que sobra? O que fazer com a obrigação que bate à porta? O que fazer com a culpa que consome? Eu queria deixar a culpa me consumir para poder, finalmente, descansar. Não consigo nem fazer o que preciso nem descansar sem culpa. Sou permanentemente perseguida e torturada pela minha própria mente, que sempre prova que ainda falta e que sempre estou errada. Estou incompleta. A falta é uma constante, e nada pode ser feito quanto a isso. As caixas estão transbordando, mal há espaço no armário, eu me sinto vazia, a conta está negativa e eu só penso em pular no vazio (sem nada que me impeça de me expandir). A expansão é importante, principalmente no ar rarefeito. O café é outra constante. Parece que, para conseguir completar uma página, tenho que esquecer quem sou. Tenho que me fragmentar. Tenho que me desconstruir. Tenho que me dissolver no ar. Tenho que me misturar à transparência. Tenho que ser o dissabor e o amargor. Se lembrar quem sou, volto atrás e nem começo. Afinal, sendo uma falha, para que começar? Uma falha, sem consequência, pode se anular. Antes que a hora em que seja tarde demais chegue. O tempo é curto, a estrutura é precária, o conteúdo é fraco, tudo se desmancha na liquidez do furtivo e tudo chega tarde demais para mudar qualquer aspecto. O começo é problemático, pois como definir o começo de algo se não se sabe o que havia antes? Como saber que o que se criou é único se não se tem elementos para comparar com o precedente? Como delimitar o espaço, salientar a diferença? Como notar a falta sem conhecer a presença? Como criar uma mente tranquila em terreno alterado? A certeza do fracasso é a única coisa que me faz continuar, pois nada que eu faça terá a chance de alterar qualquer produto de minha ação, então nada devo temer, pois nada resultará. Certo? Se estiver errada, e o nada se provar como algo, então terei a insensatez para me preocupar. Bom, nem sempre. Às vezes a conta chega.



**As opiniões expressas nesse post são de total responsabilidade do seu autor.**

domingo, 7 de junho de 2020

30 anos

30 anos. Que besteira. É cada coisa que passa na nossa mente quando somos pequenos, que é difícil conciliar o que se passa na nossa mente – inacabada – com o futuro que ela nunca vai viver. O presente muda o passado, o futuro altera o presente, e a mente tenta acompanhar o ritmo, mas, muitas vezes, é tarde demais. A vida não espera você crescer. Ninguém te espera. Os eventos se desdobram numa vibração eterna diante da qual estamos desprotegidos, e a onda vem e nos arrebata, prontos ou não, ansiosos ou desligados, cá estamos com todo o sal na boca e nada de desespero para vender. O guarda-sol que me desculpe, mas não creio que exista um humano sequer que queira criar uma engenhoca qualquer para proteger alguém. As expectativas freiam nosso desenvolvimento, as críticas nos propelem para a frente, as promessas nos mantém em suspensão, os exemplos dos outros criam falsos horizontes de futuros escritos na água que evaporam imediatamente no próximo verão. Tudo é verão, e a felicidade vive no entremeio. A definição que nos persegue desde que inspiramos o ar rarefeito desse mundo pela primeira vez, os planos formados ao longo dos anos de falsas impressões se esvaem como quando tentamos guardar um floco de neve para mais tarde. Nada sabemos, apenas que devemos nos mexer, não devemos parar, devemos continuar tentando atingir o inalcançável. E para quê? O que queremos provar? Aonde queremos chegar? O que faremos com todo o pó que logo seremos? As notas se sufocam com o tempo perdido, e nada dura. Tudo se transforma no fim que sempre fomos, mas que só encontramos quando nele estamos. Nada ressoa, nada existe, apenas a dor acumulada, multiplicada a cada ano por mil, e contada pelas crianças que ainda vão nascer. E que nada sabem do que colecionamos. Nem do quanto nos esforçamos para mudar quem somos. Deixamos nossa marca na água, e ela já foi bebida. Nada existe. Nada existe por completo. A completude é a integridade do vazio. O ar que nos preenche também nos define, de modo que não podemos isolar em caixas ou potes de vidro todas as nossas facetas, que permanecem em estado de fratura exposta. Todos estão contra nós, armando-se e se preparando para nos aniquilar. O quanto antes percebermos, antes poderemos saborear o fim do que nunca foi – realmente – sentido. Desabrocho e ponho para fora todos os espinhos que me consomem, retirando facada por facada de modo a ter o caminho desimpedido para ser capaz de terminar o que comecei. Tecer essa experiência de quase-morte não é algo que me acalenta, mas algo que devo protagonizar para caracterizar essa performance de quase-vida, de quase pessoa digna, de quase ser humano que sou. De caco de potência curvada que sou, que não se encaixa em nenhum vitral, e também não se esmigalha. A pessoa que sou sai andando a esmo, sem saber para onde tornar, pois todos os limites foram reconfigurados pela crise, pela perda e pela facada, e não consigo reconstruir. Nada posso fazer, pois nada sou. Sou o fim inacabado da meia-estação desbotada de fim de maio. Regozijemos. O amanhã virá para aqueles que souberem se reconfigurar. Crise. Ruptura. Fim-recomeço. Despertar da dor, revirar-se em sonho. Amar o odiar, desprezar o ser amado, transformar o novo em velho inútil. Testemunhar o dissabor da vida que, aos 30, nada sabe, tudo sente, destrói e renasce no mundo da queda no vazio, sem rede.

**As opiniões expressas nesse post são de total responsabilidade do seu autor.**
*Texto por Fernanda Marques Granato protegido pela lei de direitos autorais.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Infância em São Paulo nos anos 1990



- Marie! Marie Claire!
A voz saltitava pelo corredor, quase atingindo o teto, e voltava a tocar o solo, resvalando levemente nas paredes. Na tinta branca, pessoas e lugares fabulosos se reservavam para serem olhados por quem passasse, resguardados por belas molduras. A estreiteza do corredor era desafiada pela potência da voz retumbante que desviava toda e qualquer atenção para a atividade do momento: o jogo do tapete.
Se uma perna tocasse o losango acarpetado e a outra tocasse o piso de taco, seria o fim. Cada jogadora deveria posicionar com sabedoria seu pé de maneira a evitar a perda de pontos, a perda da vez, ou mesmo a entrega da vez para a adversária. Quem atingisse o outro lado da sala primeiro, pisando apenas nos losangos dos tapetes, venceria.
As pernas das cadeiras tentavam fazer a sua parte para se preparar para o confronto entre as pernas e os losangos, mas acabavam atrapalhando de qualquer forma. Uma meia de bolinhas brancas e vermelhas se aproximava de um losango, sabendo que tinha a vantagem. A melhor amiga, aquela para todos os momentos e todas as confidências, tentava saltar direto de um losango para outro, a três losangos de distância, um feito arriscadíssimo, segundo os comentaristas do jogo da semana passada. Um pé ameaçou cair fora do losango, mas o equilíbrio venceu. A melhor amiga não decepciona, pensou a dona das bolinhas algodoadas.
Mas ainda havia dois percursos traiçoeiros a conquistar. Em outra tentativa, os cabelos de uma resvalaram no piso, mas logo se apressaram a se posicionar em uma distância segura do solo. Em outro, uma cadeira se adiantava no meio do caminho, e dificultava a manobra, que teve que ser feita na diagonal, mas a melhor amiga conseguiu pisar apenas nos losangos alaranjados.
Era a última tentativa da primeira jogadora. Ela se adiantou, planejou a rota e preparou o salto, calculando possíveis erros de percurso. O ar entrou e rapidamente preencheu a caixa torácica, demorando-se a sair. Houve um arroubo de movimento e, numa lufada veloz de ar, a menina se foi. Por meio losango, a menina perdeu. A melhor amiga de quatro patas miou em comemoração. Um dia ela será humana, pensou a menina, e entenderá a minha dificuldade. Um dia.


*Texto por Fernanda Marques Granato. Texto protegido pela lei de direitos autorais.

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