sábado, 17 de janeiro de 2015

Os despropósitos de uma gota suja



Quando uma gota se debruça sobre um papel, ela sempre sabe o que fazer, o que dizer, onde ir. Nunca nenhuma gota precisou de cursos preparatórios ou de conselhos profissionais. Nenhuma gota conhecida (exceto as já falecidas) necessitou de orientação vocacional ou de reopção de curso. Nenhuma gota se diz insatisfeita em seu relacionamento com o papel, pois a superfície branca sempre dá o que a gota rotunda precisa: espaço livre para ser preenchido pela imaginação ou, no caso das gotas, por uma umidade característica dos bem-nascidos. 
Nas cidades das gotas, não há hierarquia social: toda gota sabe que pertence a uma só categoria, a das indissolúveis. A gota não precisa de uma academia que a ensine a adotar a forma correta, nem necessita de outra academia que a demonstre como pensar ou como se adaptar à vida social. A gota já nasceu adaptada, pois seu formato é todo e nenhum: todos que se aproximam são incorporados, interpretados e incompreendidos desde o momento do primeiro contato com a sua superfície aquosa.
Os poucos elementos químicos sabem a que vieram e exercem sabiamente sua função estendendo os usos da matéria e a sua capacidade de acumulação. Sabem que o formato é dependente do físico exterior do recipiente que os envolve. Sabem que a excentricidade do pensamento dependerá do hospedeiro. Sabem que a sociedade começou na unidade conhecida e mantida por toda gota que se considera digna. 
Em uma esquina esquecida, debaixo de panos mortos e saberes ignorados, encontrava-se uma gota suja. Exilada. Renegada. Excluída. Isolada. Nada sabia sobre a forma das gotas, o pensar como todo ou a existência coletiva. Nada entendia de comportamento ou destino. Sabia apenas que sua presença  neste mundo duraria somente até o próximo nascer do sol. Neste momento secaria. Para jamais retornar. Outono. 


*Texto escrito por Fernanda Marques Granato.
** Texto protegido pela lei de direitos autorais. 



**As opiniões expressas nesse post são de total responsabilidade do seu autor.**

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