domingo, 3 de agosto de 2014

A existência intermediária


Apesar da obviedade das observações dos especialistas, o sol aqui era quadrangular  tal como uma amarelinha. Pelo menos foi isso que todas as janelas me segredaram, e eu nunca questionei os seus olhares. Afinal, olhares são certezas impassíveis de questionamento.
Na rua apenas parcialmente visível, era  possível vislumbrar um carro comercial azul petróleo estacionado na calçada. Somente metade do funcionário que dirigia o furgão era visível, e não era a melhor parte.
Uma mulher corria atordoada em direção a um prédio sem fundo vestindo um revelador vestido branco por cima de uma desnecessária calça de moletom dobrada até os joelhos. Realmente era curiosa a cena que se desvelava ali, pois uma ponta do vestido da jovem havia ficado presa na boca raivosa de um cachorro que examinava atenciosamente o interior do furgão e, mesmo assim, a mulher continuava determinada a entrar no edifício, vestida ou despida, machucada ou livre dos caninos afiados do cachorro.
Uma árvore era permanentemente entrecortada pela luz do sol, criando intermediários irremediáveis, eternos companheiros de estadia naquela rua que tudo acatava: a sombra e a luz.
Uma cabine telefônica tinha sido colocada de frente para uma parede, que bloqueava a porta com seus tijolos, impossibilitando a entrada. O telefone público tocava insistentemente, sem obter resposta para seu incessante chamado. Apesar da segunda cabine telefônica estar acessível, o telefone estava em manutenção. Surpreendentemente, havia uma pessoa saindo da cabine demonstrando felicidade, talvez por não ter conseguido fazer uma ligação indesejada.
Dois minutos depois, uma sacola preta se materializou na mão esquerda do ex-ocupante da cabine. Após devida observação, a cabine encostada na parede se provou ser o reflexo do mundo visível. Do mundo inteligível. Já o mundo sensível, ah, esse mundo estará sempre entre o guarda-chuva que impedia a porta do prédio de colapsar no meio fio e o furgão guiado por mentes habitantes do futuro próximo. 
Eram simplesmente fatos do mundo ordinário interpretados por um olhar que via cores vivas no preto e branco, vida no incêndio e morte na bolha de sabão. Olhar do sol da meia noite sempre viva.

*Escrito por Fernanda Marques Granato.

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