sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

As pessoas



Lá do fundo da gaveta, nunca me vi em perigo. No fundinho da caixa de costura, em meio às linhas e agulhas, sempre senti que o mundo era um redemoinho de quenturas e sabores, aconchegando-me em suas cores e texturas e me protegendo de desventurados sujeitos. Duas bolinhas rubras bem-apessoadas me formavam apoiando-se em galhos verde-escuros de algodão. Alguns seres de oito pernas – por vezes quatro – ameaçavam minha integridade física, consumindo partes de minha composição e a tornando oca, mas eu me mantinha una na caixa de costura.
A madrinha sempre me visitava com seus dedos gordos e arredondados. Toda manhã, mãos que conheceram uma revoada de grãos de café moídos me massageavam na escolha da melhor linha. A vermelha cor de cereja era sempre a favorita. Madrinha sentava-se confortavelmente no sofá e passava a manhã a bordar – quando não perdia os óculos, como se passou hoje. 
            Dionísia, a cozinheira, era íntima das minhas semelhantes, as cerejas da calda de frutas vermelhas favorita do Marcelo. Elas passavam grandes períodos enregelando-se na geladeira para depois mergulharem na brancura da camisa de Marcelo e o deixarem com a cara emburrada.
            Olívia tinha por mim uma grande estima: guardava-me próximo do colo, lugar protegido dos olhares inquisidores de possíveis transeuntes. Era um lugar de destaque. Alberto, marido de Olívia, orgulhava-se mais das cerejas que do broche, afinal não formávamos qualquer broche: era um broche comprado na Itália. O casal era bem esnobe e exibia todos os seus bens, mas esse exibicionismo não nos afetava, pois, no mundo das cerejas, era tudo imensidão vermelha, e isso bastava.

            Durante uma tarde de verão, recebi a visita das cerejas de Olívia e de uma tempestade que se avizinhava há muitas horas. A menina da casa adoeceu diante da chuva, pois já estava bem fraca, e foi se deitar perto das cerejas de algodão. Marcelo e Olívia se sentaram na sala e ficaram a observar os clarões na janela a iluminar a faísca da paixão que se acendia entre os dois. Marcelo se interessou pelas cerejas de rubi do broche, e se inclinou tanto para vê-las que elas acabaram no chão. Entretanto, Olívia era comprometida com Alberto, que dormia no quarto ao lado, e Marcelo tinha febre tifoide. Marcelo amanheceu inanimado no chão. Olívia gritou para a manhã que nascia em vão, pois as cerejas não podiam fazer nada por Marcelo. Só elas eram eternas. Madrinha achou os óculos na minha gaveta, ao lado da caixa de costura, e eu voltei a habitar em meio às linhas cor de cereja.

*Texto de Fernanda Marques Granato.

**As opiniões expressas nesse post são de total responsabilidade do seu autor.**

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