Lá do fundo da gaveta, nunca me vi em
perigo. No fundinho da caixa de costura, em meio às linhas e agulhas, sempre
senti que o mundo era um redemoinho de quenturas e sabores, aconchegando-me em
suas cores e texturas e me protegendo de desventurados sujeitos. Duas bolinhas rubras
bem-apessoadas me formavam apoiando-se em galhos verde-escuros de algodão. Alguns seres de
oito pernas – por vezes quatro – ameaçavam minha integridade física, consumindo
partes de minha composição e a tornando oca, mas eu me mantinha una na caixa de
costura.
A madrinha sempre me visitava com seus
dedos gordos e arredondados. Toda manhã, mãos que conheceram uma revoada de
grãos de café moídos me massageavam na escolha da melhor linha. A vermelha cor de cereja
era sempre a favorita. Madrinha sentava-se confortavelmente no sofá e passava a
manhã a bordar – quando não perdia os óculos, como se passou hoje.
Dionísia,
a cozinheira, era íntima das minhas semelhantes, as cerejas da calda de frutas vermelhas favorita
do Marcelo. Elas passavam grandes períodos enregelando-se na geladeira para
depois mergulharem na brancura da camisa de Marcelo e o deixarem com a cara
emburrada.
Olívia
tinha por mim uma grande estima: guardava-me próximo do colo, lugar protegido
dos olhares inquisidores de possíveis transeuntes. Era um lugar de destaque.
Alberto, marido de Olívia, orgulhava-se mais das cerejas que do broche, afinal não formávamos qualquer
broche: era um broche comprado na Itália. O casal era bem esnobe e exibia todos
os seus bens, mas esse exibicionismo não nos afetava, pois, no mundo das
cerejas, era tudo imensidão vermelha, e isso bastava.
Durante
uma tarde de verão, recebi a visita das cerejas de Olívia e de uma tempestade que se
avizinhava há muitas horas. A menina da casa adoeceu diante da chuva, pois já
estava bem fraca, e foi se deitar perto das cerejas de algodão. Marcelo e Olívia se sentaram
na sala e ficaram a observar os clarões na janela a iluminar a faísca da paixão
que se acendia entre os dois. Marcelo se interessou pelas cerejas de rubi do
broche, e se inclinou tanto para vê-las que elas acabaram no chão. Entretanto,
Olívia era comprometida com Alberto, que dormia no quarto ao lado, e Marcelo
tinha febre tifoide. Marcelo amanheceu inanimado no chão. Olívia gritou para a
manhã que nascia em vão, pois as cerejas não podiam fazer nada por Marcelo. Só elas eram eternas.
Madrinha achou os óculos na minha gaveta, ao lado da caixa de costura, e eu
voltei a habitar em meio às linhas cor de cereja.
*Texto de Fernanda Marques Granato.
**As opiniões expressas nesse post são de total responsabilidade do seu autor.**
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