sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Idiotices do João [82]


Há uma força que só pode ser alcançada na santa paz da solidão.
Há uma profundeza aí dentro que você não alcança pelos meios normais. Estamos mergulhando. Sabe, ela não está aqui. Pela segunda vez, ela não está aqui nesta data. E, por isso, você não está em lugar nenhum. Seria isso? Há uma marcha de pensamentos se armando para a próxima batalha. Uma luta travada de forma incessante no mundo invisível. Muito sangue foi dilacerado em vosso nome. Você consegue compreender o sussurro do silêncio?
Não há ninguém aqui. Você fez com que fosse assim.
Houve o desequilíbrio. Houve uma conspiração cósmica? Conveniente pensar assim. Mas ainda está vivendo esmagado pelo seu calcanhar. Cortou bem na garganta, onde dói mais: a grana.
Ainda nesta situação. Como se mover?
As profundezas se remexem. Ela não está aqui, pela segunda vez.
Ela está sim, na verdade. Olhando-te do céu.
Olhando-te se remexer em palavras. Buscando desculpas para você estar onde está.
Sem ninguém aqui.
Alguém disse que faz todo o sentido. Eu não tenho sentido algum.
A certeza do triunfo. Está vindo. Você está fazendo? Está buscando. Perfurando. Rasgando com os seus próprios dentes. Está demorando? Está sim. Mas está vindo? Certeza absoluta.
Então, por que não consegue esperar sem delirar?
O Mensageiro. É seu pai? Só se você tiver confiança para bancá-lo.
Por que está duvidando de si?
Olha aqui. Não é mais jovem. Olhe bem aqui. Nos meus olhos. Com quem você pensa que está lidando? Olhe bem aqui.
O trono das alturas. Está me entendendo? Eu quero o trono das alturas. Eu quero o grau máximo. Está me compreendendo?
Eu quero me banquetear com a placenta do mundo. Eu quero me banhar com o sangue invisível da terra. Você compreende isso? Estão soltando fogos. Você se importa? Você sabe para onde está indo?
Você sempre soube.
Só há um caminho para seguir. Para frente. Você está sentindo as asas negras do Mensageiro brotarem das suas costas? Você sabe quantas histórias mais você tem para contar?
O Universo está inteiro completo no mapa da sua mente. As vidas estão pulsando no coração da sua alma. Você sempre soube disso.
Você sabe com quem você está lidando?
Um brinde, minha senhora. Um brinde a todos que são sangue do meu sangue. O momento está chegando. O futuro você faz agora, correndo em silêncio, sangrando sua própria pele na escuridão, espreitando os cantos mais esquecidos desse labirinto aí que você chama de mente.
Ela não está aqui. E ela está. Sempre esteve.
Eu sou filho do Mensageiro. Minha meta é o topo da montanha do Universo.
Sonho tão bem a ponto de criar novas realidades. Sempre sonhei, sempre criei.
Ela não está aqui. Ela está em você. Você está para os seus. Não hoje. Mas está. Lembre-se que você está. O desequilíbrio está passando.
Você é o centro do seu próprio universo.
A santa paz da solidão me fortalece. A balbúrdia da conexão me engrandece. A insanidade do autoconhecimento me faz estar vivo.
Este aqui não foi o melhor. Outros relatos melhores estão por vir.
A solidão me engrandece. A união me fortalece.
Eu estou vivo.
Um brinde, minha senhora.

**As opiniões expressas nesse post são de total responsabilidade do seu autor.**

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

As pessoas



Lá do fundo da gaveta, nunca me vi em perigo. No fundinho da caixa de costura, em meio às linhas e agulhas, sempre senti que o mundo era um redemoinho de quenturas e sabores, aconchegando-me em suas cores e texturas e me protegendo de desventurados sujeitos. Duas bolinhas rubras bem-apessoadas me formavam apoiando-se em galhos verde-escuros de algodão. Alguns seres de oito pernas – por vezes quatro – ameaçavam minha integridade física, consumindo partes de minha composição e a tornando oca, mas eu me mantinha una na caixa de costura.
A madrinha sempre me visitava com seus dedos gordos e arredondados. Toda manhã, mãos que conheceram uma revoada de grãos de café moídos me massageavam na escolha da melhor linha. A vermelha cor de cereja era sempre a favorita. Madrinha sentava-se confortavelmente no sofá e passava a manhã a bordar – quando não perdia os óculos, como se passou hoje. 
            Dionísia, a cozinheira, era íntima das minhas semelhantes, as cerejas da calda de frutas vermelhas favorita do Marcelo. Elas passavam grandes períodos enregelando-se na geladeira para depois mergulharem na brancura da camisa de Marcelo e o deixarem com a cara emburrada.
            Olívia tinha por mim uma grande estima: guardava-me próximo do colo, lugar protegido dos olhares inquisidores de possíveis transeuntes. Era um lugar de destaque. Alberto, marido de Olívia, orgulhava-se mais das cerejas que do broche, afinal não formávamos qualquer broche: era um broche comprado na Itália. O casal era bem esnobe e exibia todos os seus bens, mas esse exibicionismo não nos afetava, pois, no mundo das cerejas, era tudo imensidão vermelha, e isso bastava.

            Durante uma tarde de verão, recebi a visita das cerejas de Olívia e de uma tempestade que se avizinhava há muitas horas. A menina da casa adoeceu diante da chuva, pois já estava bem fraca, e foi se deitar perto das cerejas de algodão. Marcelo e Olívia se sentaram na sala e ficaram a observar os clarões na janela a iluminar a faísca da paixão que se acendia entre os dois. Marcelo se interessou pelas cerejas de rubi do broche, e se inclinou tanto para vê-las que elas acabaram no chão. Entretanto, Olívia era comprometida com Alberto, que dormia no quarto ao lado, e Marcelo tinha febre tifoide. Marcelo amanheceu inanimado no chão. Olívia gritou para a manhã que nascia em vão, pois as cerejas não podiam fazer nada por Marcelo. Só elas eram eternas. Madrinha achou os óculos na minha gaveta, ao lado da caixa de costura, e eu voltei a habitar em meio às linhas cor de cereja.

*Texto de Fernanda Marques Granato.

**As opiniões expressas nesse post são de total responsabilidade do seu autor.**