Somos todos preconceituosos.
Atravessamos a rua quando vemos aquele cara preto encapuzado vindo em nossa direção durante a noite fria, olhamos feio para a mocinha obesa usando roupa apertada, chamamos de gostosa a moça bonita usando roupa curta. Nos achamos no direito de ditar o que a mulher deve usar, nos achamos no direito de falar a respeito do racismo, nos consideramos no dever de alertar os gordos sobre sua saúde. Nos enganamos para fingir que estamos muito preocupados com os outros quando na verdade não suportamos ver o negro usando ostentando seus cabelos crespos, o gordo sendo feliz com seu corpo ou a mulher sendo o que ela bem quiser ser. Nós damos moedinha para o mendigo e achamos que estamos salvando o mundo. Nós deixamos de comer carne e achamos que todos os animais serão salvos da barbárie. Nós choramos quando o jornal nos diz que a morte da criança branca da classe média foi uma grande tragédia. Nós xingamos de vândalos os oprimidos que expressam seu direito de liberar sua fúria contra os meios e símbolos de opressão. Nós chamamos de maconheiros desocupados os moleques que se mobilizam em movimentos estudantis.
E nós nos achamos o máximo quando estamos engajados em tais movimentos. Nós nos achamos os senhores corretos e as rainhas dramáticas da vanguarda, nós nos vitimizamos em excesso para que todos olhem para nós, nós lutamos do lado oprimido e oprimimos quem pensa diferente de nós. Nós deixamos que nossas vaidades e nosso ego imbecil nos guie e tentamos justificar racionalmente nossas ações com argumentos viciados e tendenciosos. Nós fingimos que nos importamos para que todos se importem com o que verdadeiramente não é importante. Nós apontamos o dedo para o preconceito alheio sem ao menos nos darmos ao trabalho de olharmos bem nos olhos dos nossos próprios preconceitos. Nós usamos discursos bonitos e politizados e continuamos oprimindo com machismos, racismos, homofobias, gordofobias. Nós detestamos as palavras clichês de ordem e somos cavalgados por elas. Nós nos esgoelamos usando tais palavras viciadas de ordem e nos esquecemos de seu significado, uma vez que estamos cegos por nossa vaidade. Nós fingimos que nos importamos para que os demais se importem conosco.
Nós fechamos os olhos para nossa incoerência, estupidez e inutilidade e usamos nossos óculos cor de rosa de várias cores. E forçamos que todos os demais enxerguem as cores e formas que nós enxergamos, seja com discurso suave de um pretenso intelectual, seja com a fala furiosa de um militante, seja com o tom pretensamente sensato de um razoável. Nós escondemos nossos preconceitos e contradições para debaixo do tapete enquanto lutamos por direitos que já temos e fingimos nos importar com oprimidos que na verdade estão bem distantes de nós. Nós nos enchemos de orgulho e preenchemos nossa existência de significado quando nos apoderamos de lutas que não nos pertencem. Enquanto isso, continuamos inventando razões e mais razões para provar que funk não é cultura, massacramos quem opta por não comer nenhum derivado animal, achamos ridículo os sotaques do norte e nordeste e apontamos o dedo para quem aos nossos olhos é feio e se veste mal. Nós fingimos afetação para mostrar o quanto não nos importamos e nos intrometemos sempre nos assuntos da moda, realizamos grandes espetáculos no palco do mundo, com palavras bonitas de discursos prontos, com olhares e risadinhas certeiras e com roupinhas transadas que são a última tendência. Enquanto isso, atravessamos a rua quando o cara preto encapuzado vem em nossa direção à noite, chamamos de puta a menina que tem relação sexual com quem ela quer e fingimos estar preocupados com a saúde do gordo que na verdade achamos feio. E nos recusamos a aceitar que há pontos de vista diferentes dos nossos, nos recusamos a aceitar que nossas opiniões e opções são frutos do meio em que vivemos, são resultados de ideologias e padrões impostos, e chamamos de racistas os negros que se organizam em coletivos e de piranhas as mulheres que vão às ruas com os seios de fora. Clamamos pela igualdade sem nos darmos ao trabalho de lembrar que tratamos desigualmente nossos semelhantes por décadas, séculos, milênios.
E fingimos que está tudo bem quando se passou mais um dia em que impomos nossas opiniões sem nem ouvir o que o outro realmente queria dizer.
Somos todos preconceituosos.
**As opiniões expressas nesse post são de total responsabilidade do seu autor.**